Por Ana Laura Menegat
Rosa Castellano Marquez, uma mulher de cabelos cacheados e vermelhos e de risada marcante, é uma dos mais de trezentos venezuelanos refugiados na capital amparados pela Associação Venezuelana em Campo Grande (AVCG). Rosa saiu de sua terra no dia 5 de julho de 2018 e pisou em solo brasileiro pela fronteira em Boa Vista, no estado de Roraima. Ela conta que a vida na Venezuela era bonita, mas se tornou inviável comprar comida, medicamentos e até pasta de dente. Foi quando decidiu migrar, acompanhada de cinco amigas. Ao chegar no Brasil, viu a cidade tomada de conterrâneos morando nas ruas. “Eu comecei a chorar e todas que estavam junto começaram a chorar também, porque sabíamos que teríamos que fazer o mesmo”, conta Rosa, com lágrimas nos olhos.
Segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), entre 2016 e 2021, mais de 54 mil refugiados tiveram a solicitação de refúgio conferida, o que representa 71,8% dos pedidos. 114 nacionalidades compõem as mais de 75 mil decisões totais. Os números estão disponíveis na Plataforma Interativa de Decisões sobre a determinação da condição de refugiados no Brasil, feita pelo Conare em parceria com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR).
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“Eu acho que o ser humano tem que ser migrante para compreender o que é um migrante”, afirma Mirtha Virginia Carpo, presidente-fundadora da AVCG. Mirtha não é refugiada, mas ela, o marido Rafael e a filha Mariana saíram da Venezuela há 14 anos, esperando melhorias na situação política, econômica e social do país natal. Por aqui ficaram e, dois anos atrás, se naturalizaram brasileiros. Com a mistura do espanhol e do português, sua fala demarca as fronteiras sociais, territoriais e emocionais que dividem a vida dos imigrantes.
Para Wagner Gomes, presidente-fundador da Fraternidade sem Fronteiras, é preciso criar políticas públicas para essas pessoas, que já foram excluídas da sociedade. O dia 20 de junho é o Dia Mundial do Refugiado, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) nos anos 2000. “Na verdade, não deveria nem ter dia dos refugiados, porque não deveria ter refugiados. Se você tem que criar um dia para falar, é porque existem situações nas quais bandeiras precisam ser levantadas e realizada uma conscientização", defende.
REFUGIAR-SE
Rosa é mãe de três, avó de quatro e esposa de um. Deixou todos quando veio para o Brasil, sem ter a certeza de que os veria novamente. Ao chegar em Boa Vista, Rosa dormiu por cinco dias nas ruas, usando sacolas plásticas de lixo em uma tentativa de se proteger da chuva. Ela diz que não tem religião, que sua fé é natural, e nessa fé que ela se apoiou para conversar com Deus, pedindo por uma resposta: “Deus, será que volto ou sigo?”.
Não voltou. Estava com os pés inchados, dolorida e chorava muito. Assim como outros refugiados e refugiadas, Rosa conseguiu abrigo em uma igreja da cidade. Passou a vender latinhas, café e cigarros. “O importante era ter os centavos, o dinheiro”, conta.
Após sete dias no Brasil, a Fraternidade sem Fronteiras lhe ofereceu um trabalho em Campo Grande, com a passagem de avião comprada pela instituição. Rosa chegou na Capital Morena no dia 8 de julho de 2018. “Não vou para trás, eu vim sem ninguém e voltar sem nada não dá, eu vou para lá, seja o que for”.
Ela passou seis meses sozinha até que Francisco José Motaban, seu companheiro, veio ao seu encontro. Os dois se conheceram quando crianças e, após encontros e desencontros da vida, se juntaram. "Ela falou para morarmos juntos, eu falei que queria morar sozinho, que tava ‘de boa’, mas aí tentamos e estamos até hoje. Quando ficou difícil [na Venezuela] eu perguntei: Rosa, você tem coragem de sair? Tenho! Então se você vai, eu vou atrás de você”, relembra Francisco.
Eles nunca passaram por xenofobia, mas sabem que muitas pessoas em Boa Vista e em Campo Grande já sofreram com esse tipo de discriminação, caracterizada pela a intolerância e o preconceito com imigrantes. “Não é todo mundo que tem essa sorte, a gente teve, graças a Deus”.
Ele nunca pensou em migrar e enfatiza que tudo que uma pessoa refugiada está procurando é auxílio. “Refugiado para mim, é recomeçar uma vida nova. Você não tem nada, você chega num país que você, primeiramente, não sabe falar a língua, precisa de ajuda e aí não conhece a cultura. Eu acho que eu nunca passei por essa situação, mesmo perdido no mato [quando morava na Venezuela], eu conseguia me orientar só olhando para o céu, o sol e a lua, e sabia para onde ir. Aqui você não conhece nada, tem que começar do zero. Fazer amizade, aprender uma nova língua como se fosse uma criança na escola”, explica Francisco.
APOIO VENEZUELANO
Mirtha atuava como bioquímica na Venezuela, mas, ao chegar no Brasil, fez curso de gastronomia e hoje trabalha como chefe de cozinha. Ela e a família vieram para o país devido a uma oportunidade de emprego que surgiu para Rafael, hoje coordenador da ONG Panthera Brasil. Em 2018, quando começaram a chegar mais refugiados no país, a família de Mirtha passou a dar apoio e a participar de ações através do projeto MS Acolhe, realizado pela Fraternidade sem Fronteiras.
Nessa época, começaram a trabalhar, fazer eventos e trazer as famílias das pessoas refugiadas, momento que Mirtha considera um dos mais emocionantes. No ano de 2019, já eram cerca de 100 famílias refugiadas na capital sul-mato-grossense, o que criou uma pressão para que venezuelanos se unissem em uma instituição, que veio a ser a Associação Venezuelana em Campo Grande (AVCG). A iniciativa atua de forma 100% voluntária e depende de doações, realizando campanhas de agasalho e busca de cestas básicas. “Somos uma associação de venezuelanos, mas nós representamos todos os migrantes também”, afirma Mirtha.
A associação ajuda passando informações sobre a questão de responsabilidade social, legislações brasileiras, ensina a tirar CPF, faz divulgação de vagas de trabalho, explica como tirar CNH e onde tirar o cartão SUS. Mirtha acredita que a compreensão do idioma e a questão financeira são as mais difíceis para os refugiados.
“Ser migrante é uma mudança total, é uma mistura de cultura, é aprender coisas novas e ter a vontade de apreciar coisas que você não conhecia e ser amigo. Um dos momentos mais lindos [da AVCG] foi quando começamos a trazer as famílias dos primeiros refugiados, foi um momento de alegria, de choro, muitos sentimentos misturados. Sempre me falam: senhora Mirtha, estamos muito agradecidos!”, compartilha a presidente.
A família de Rosa acredita que esse acolhimento é fundamental para que as pessoas se assentem no novo território e já receberam duas famílias de refugiados em sua casa, formando, assim, uma rede de apoio. “Essa agora é nossa função aqui em Campo Grande: ajudar os outros”, defende Francisco.
A FRATERNIDADE COMO POTÊNCIA TRANSFORMADORA
Wagner acredita que a fraternidade é a peça fundamental para uma mudança no mundo e defende a necessidade das pessoas se verem como irmãs e irmãos. Para ele, a Fraternidade sem Fronteiras é um sistema humano e respeitoso. “É como eu gostaria de ser recebido se eu fosse refugiado”.
A casa de Rosa e Francisco e Arlenis foi montada a partir das doações viabilizadas pela Fraternidade sem Fronteiras e pela Associação Venezuelana em Campo Grande. “Teve uma vez que eu fui num local levar a filha da Rosa para uma entrevista e cheguei lá tinham seis venezuelanos, aí a Arlenis disse ‘ah já que tu tá aqui, auxilia eles também’ e aí todos os seis ficaram empregados”, conta Josete Daunis, tutora voluntária do projeto.
SAUDADE: UMA LUTA DIÁRIA
Arlenis ainda não se adaptou à vida e à cultura brasileira. Ela quer voltar à Venezuela, visitar a família e apresentar seu filho aos parentes. “Sinto falta da minha terra”.
Para Rosa, a saudade é uma presença permanente no peito. “Ah não é fácil, já estamos um pouquinho curados, mas faz bastante falta. Meu filho, meu neto e minha terra. Eu não me esqueço da minha família”.
Apesar dessa saudade, a luta continua. A família trabalha em supermercados, Rosa no serviço de limpeza, Francisco como promotor de vendas e Arlenis na função de operadora de caixa. “O importante é que todos estamos trabalhando. Não podemos nos render a esta altura, precisamos continuar trabalhando para conseguir o que queremos”, afirma Rosa.
SEGUIR SONHANDO
Francisco fala rápido, o português corre por sua língua e nela canta sua cultura e vontade de viver. Escuta músicas venezuelanas, como a salsa cantada por Oscar D’Leon e a llanera de Reynaldo Armas. Gosta do modão gaúcho e do sertanejo raiz.
Rosa adora danças. Quando tinha festa na comunidade, ela ia para dançar, mas também aproveitava para vender suas famosas empanadas. Francisco levava todas as coisas que Rosa precisava em sua moto: panela, comida e até uma mesa. Depois de deixar todos os aparatos no lugar, voltava para buscar a amada. Hoje sonha em voltar a trabalhar com comida e, quem sabe, abrir um restaurante. Quer conhecer Corumbá, as praias de São Paulo e as magias de Santa Catarina.
Mirtha move mundos e fundos em prol de que outras pessoas possam viver com dignidade, que é também no que acredita Wagner. O futuro da AVCG vislumbra uma sede fixa e o desejo de doadores mensais, para que o aluguel do futuro espaço físico possa ser pago. Além disso, querem dar cursos para que as pessoas possam entender melhor o português, terem amparo psicológico e também consigam usar do empreendedorismo como uma forma de viver.
COMO AJUDAR
Mirtha acredita que o primeiro passo é ter paciência com as pessoas que estão aprendendo a língua portuguesa e não ter preconceito. “O migrante vem com mais problemática, entender que a travessia de um país para o outro [põe essas pessoas em situação de risco] para roubos e estupros. O migrante vem com mais traumas e, quando chegam aqui, querem ter um trabalho, uma tranquilidade e estabilidade, para que seus filhos possam ir para a escola e comecem a se nutrir bem. E a parte de saúde, muitos deles vêm com doença, porque não tiveram como tomar conta da saúde lá, não havia medicamentos, dinheiro, nada”.
É possível fazer doações de cestas básicas, roupas e cobertores para a instituição. Além disso, quantias em dinheiro podem ser doadas para a AVCG através do PIX: 42400884/0001-11 (CNPJ). Mais informações também podem ser obtidas pelo perfil do Instagram da associação:
LINK|-|https://www.instagram.com/avcg_ms/|-|@avcg_ms
A Fraternidade sem Fronteiras possui produtos à venda no site e possui um canal de apadrinhamento, no qual pessoas podem apoiar financeiramente os projetos realizados.
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“De alguma forma, todos e todas somos o mesmo”, acredita Rosa.